Um artigo muito interessate: Marx sem Lenin

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Renato Janine Ribeiro* – O Estado de S.Paulo

Artigo publicado no O Estado de S. Paulo – 27/04/2010

Não há dúvida de que Marx foi um pensador de esquerda. Isso quer dizer duas coisas: primeiro, ele foi um pensador cujas ideias ? como a importância da economia (“condições materiais de existência”) na vida social ? influenciaram também outras famílias políticas. Segundo, foi um político cujo nome foi fartamente invocado pelos partidos comunistas e/ou marxistas-leninistas no último século. Mas talvez esses partidos não passassem num exame sobre o pensamento de Marx.

Resumirei esse pensador complexo em três ideias fortes, que estão longe de esgotá-lo, mas são essenciais. A primeira: deve ser extinta a propriedade privada dos meios de produção. Eles devem pertencer à sociedade, e não a indivíduos. É claro que por meios de produção não se entende a casa, o carro, os móveis, mas bens de impacto maior. É esse o ponto que coloca Marx à esquerda e ainda hoje desperta a ira dos anticomunistas, que receiam perder suas propriedades.

Mas vejamos uma segunda ideia-chave. Geralmente a esquerda se pauta pela defesa de um Estado atuante na economia. Até se distingue esquerda e direita pelo papel do Estado na vida econômica. Ora, Marx não defende o Estado máximo. Nem o Estado mínimo, é óbvio. O que ele defende é o Estado nenhum. A supressão do Estado é um princípio fundamental para ele, que aí se aproxima dos anarquistas. O Estado seria um aparelho repressor. Por isso, Marx não queria um Estado se metendo na vida pessoal ou no que quer que seja. As associações de produtores ? isto é, dos trabalhadores tanto produzindo quanto organizando a produção ? deveriam assumir as funções que atribuímos ao Estado e que ainda fossem necessárias. Quanto ao controle da vida sexual, da moral etc., nada de Estado, nada de polícia.

Vemos que esse Marx está muito longe do comunismo do século 20! Ficará ainda mais longe dele se lembrarmos uma terceira ideia do pensador alemão. Os modos de produção ? o capitalismo e, antes dele, o feudalismo ? vivem enquanto são eficazes. Quando um deles não dá mais conta de organizar a produção, é substituído. É um processo traumático, demorado, mas que acontece. O grande exemplo é a vitória do capitalismo sobre o feudalismo. Custou séculos, mas se realizou.

No futuro, esperava Marx que o socialismo (a cada um segundo o seu trabalho) e, depois, o comunismo (de cada um segundo suas possibilidades, a cada um segundo suas necessidades) se mostrariam mais eficazes que o capitalismo. Quando este esgotasse sua capacidade de organizar a produção, também passaria sua vez. Um exemplo: se o capitalismo, por seu “instinto selvagem”, for predatório a ponto de ameaçar a sobrevivência do planeta (esse é um exemplo meu, mas que ilustra como atualizar seu pensamento para os dias de hoje. Fernando Gabeira não concorda e acha que o capitalismo pode se adaptar a uma economia verde e sustentável).

Ora, como fica o comunismo do século 20 ? e o pouco que dele resta no 21, talvez apenas Cuba, porque China e Vietnã se abriram à economia de mercado e a Coreia do Norte não passa de uma ditadura de família ? no quesito da capacidade de organizar a produção? Quando Castro reprime até mesmo restaurantes simples mantidos por famílias, porque estariam instilando o veneno do capitalismo no “homem novo” cubano, o que ele nos mostra? Simplesmente que o socialismo lá implantado não é mais eficaz que o capitalismo. Por isso, o Estado cubano se fortalece, em vez de rumar para sua extinção. E se fortalece no que tem de pior: a polícia, a repressão.

Marx falou de partidos e falou, também, na revolução armada como meio para tomar o poder. Mas esse não é o cerne de seu pensamento. O coautor de vários de seus livros, Friedrich Engels, que sobreviveu a ele por 12 anos, em seus últimos textos cogitava a vitória do socialismo pela via eleitoral, pacífica. Nesse tempo, colaboraram com ele Eduard Bernstein, autor de Socialismo evolucionista, a obra inaugural do “revisionismo” que os comunistas depois tanto condenariam, e Karl Kautsky, que os comunistas chamariam de “renegado” porque não apoiou a Revolução Russa e manteve um projeto social-democrata ? que Kautsky, é bom lembrar, considerava marxista.

O que quero dizer com isso? Não fossem a 1.ª Guerra Mundial e a queda do czarismo, o socialismo marxista poderia estar associado hoje a uma opção democrática, que era a dos partidos socialistas francês e alemão. A vitória de Lenin e do partido bolchevista modificou profundamente o que significava o marxismo. Um projeto empenhado na extinção do Estado foi desviado para a construção de um Estado totalitário e policial. “Marxismo-leninismo” deveria ser entendido como uma contradição em termos, não como uma expressão que se use tranquilamente. Talvez o hífen seja, na verdade, uma subtração: marxismo menos leninismo, dá quanto?

Quer isso dizer que os projetos políticos de Marx são atuais e podem dar certo? Há pelo menos um problema: o que significa “propriedade social” dos meios de produção? Nós nos acostumamos, na democracia, a ver o Estado como expressão política da sociedade. Como “a sociedade” será proprietária dos meios de produção, se não houver Estado? Difícil de entender. Mas é preciso, para quem discute política, lembrar que Lenin mudou muito o que Marx e Engels disseram; que ele não foi seu herdeiro principal ou necessário; e que, se Lenin adulterou o que havia de melhor em Marx ? um certo espírito democrático ?, não há mal em rever, corrigir e alterar o que, na obra de Marx, está superado.

Não podemos deixar Marx refém do comunismo histórico. Talvez seja bom, um dia, discutir como o leninismo se apropriou, indevidamente, de seu espólio. Mas o fundamental é saber que o leninismo foi um dos usos mais duvidosos que se pôde ter do marxismo.
*PROFESSOR TITULAR DE ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA NA USP, FOI DIRETOR DE AVALIAÇÃO DA CAPES

A leitura tem que ser um prazer

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Li ontem um artigo no jornal O Globo, de Zuenir Ventura, sob o título: “Como (não) formar leitor” (Clique aqui para ler). Esse artigo traz uma uma questão que precisa ser discutida na escola.

Eu sempre tive a opinião de que temos que oferecer a nossos estudantes livros que provoquem prazer na leitura para depois pegarem os clássicos mais densos, quando já tiverem uma capacidade maior de apreensão. Parabenizo o jornalista Zuenir Ventura pelo artigo.

Tive, ainda, uma grande alegria ao ver citado em um artigo do antropólogo Roberto DaMatta, o maranhense, também antropólogo e escritor, Nunes Pereira.

É sempre satisfatório ver conterrâneos nossos, embora já falecidos, serem relembrados.

Para quem quer ler o artigo, clique aqui.

Para quem quer conhecer Nunes Pereira, clique aqui.

Pedro Fernandes

Artigo – Delegar Funções entre as virtudes

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Delegar Funções entre as virtudes

Por que cobrarmos somente do amor a função de mudar o mundo? Desde os primórdios a humanidade sentiu a necessidade de estabelecer um conjunto de boas ações e qualidades através das quais o ser humano poderia evoluir. Estabelecido este conjunto de boas ações, podemos definir virtudes como, a “disposição constante do espírito que nos induz a exercer o bem e evitar o mal. O conjunto de todas ou qualquer das boas qualidades morais”. Ação virtuosa, quer como indivíduo ou espécie, quer pessoalmente ou coletivamente.

Segundo Aristóteles, virtude é uma disposição adquirida de fazer o bem, e ela se aperfeiçoa com o hábito. Jesus disse: “Ama o teu próximo como a ti mesmo”. Mas Cristo disse isto porque ele é amor puro e possui todas as virtudes, o conjunto de toda e qualquer das boas qualidades morais. Assim torna-se um ser perfeito, de amor absoluto. Ele sabe que o amor muda o mundo, mas nós mortais não sabemos. Não podemos cobrar somente do amor a função de mudar o mundo, se a humanidade, por necessidade, para firmar as bases de sua evolução, estabeleceu um conjunto de boas ações e qualidades através das quais poderia se perpetuar e evoluir.

Por ser um conjunto de virtudes, para evoluirmos e construirmos um mundo melhor, necessitamos delegar funções entre as virtudes, o trabalho precisa ser de todas. Em um mundo que, em sua grande maioria ainda não sabe na prática o que é ação virtuosa e o que são virtudes, para que servem, ainda precisamos aprender a ser sociedade. Se não cobramos e não vivemos respeito, dignidade, generosidade, justiça, gratidão, boa-fé, humildade, e honestidade entre outras virtudes, como cobrar amor? O amor precisa delegar funções entre as virtudes, porque o amor é a virtude suprema, e para amar, assim como estabelece o conjunto das boas ações que induz o espírito para o bem, primeiro precisamos respeitar, sermos dignos, generosos, justos, educados e éticos.

Acima de tudo, respeito, dignidade, generosidade, justiça e ética precisam ser ação e não discurso. Portanto, antes de cobrarmos amor ou procurarmos amar, precisamos viver as demais virtudes, a partir da prática e vivência das quais , chegaremos à capacidade de amar. Se não somos capazes de nos respeitar a nós mesmos e ao próximo como seres sociais, de sermos éticos, generosos e honestos, se não somos capazes de praticar a justiça em sua essência, como acreditamos que seremos capazes de amar a nós mesmos e aos outros como seres sociais? O amor que muda o mundo é a junção de todas as virtudes, é a ação virtuosa. A capacidade de amar é alcançada quando as demais virtudes fazem parte do universo particular e coletivo da sociedade e do mundo. O mundo não precisa primeiramente de amor, o amor está além das necessidades básicas do ser humano, o mundo precisa imediatamente é de viver ações virtuosas.

O amor não existe sozinho, é a junção das demais virtudes, somente podemos amar se respeitarmos, se praticarmos a justiça, se formos honestos, dignos e éticos. Se estas virtudes forem praticadas e vividas por todos, o amor existirá em absoluto e não mais no campo dos desejos inatingíveis, e assim um mundo melhor será possível.

*Lurdiana Araújo é professora e poetisa, autora do livro”Campolina – O Jardim da Felicidade”

Artigo – Amor na Verdade

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O artigo abaixo é de minha autoria e foi publicado no Jornal O Estado do Maranhão de hoje (30/08/2009):

O amor na verdade

Pedro fernandes

 A nova encíclica do papa Bento XVI, Caritas in veritate, reitera a salutar tradição da Igreja Católica de analisar criticamente os grandes dilemas socioeconômicos da atualidade à luz das verdades eternas dos Evangelhos. Sua Santidade se coloca, assim, como legítimo continuador da doutrina social cristã, iniciada por seu antecessor Leão XIII, no final do século XIX, com a encíclica Rerum novarum, continuada por Paulo VI, em sua Populorum progressio e pelo saudoso João Paulo II, autor de duas encíclicas sociais memoráveis (Laborem exercens e Centesimus annus).

Caritas in veritate (“O amor na verdade”) foi escrita para chamar a atenção dos poderosos do mundo para os dolorosos deslocamentos sociais provocados pelo pior crise econômica mundial desde a Grande Depressão dos anos 30.

Em primeiro lugar, o Santo Padre afirma que o mercado, apesar do seu papel fundamental como alocador de recursos necessários para a satisfação das necessidades das pessoas, é incapaz de resolver sozinho todos os problemas da sociedade (E, o que é pior, quando mal regulado, o mercado agrava esses problemas; daí a importância do Estado para promover a distribuição mais justa da riqueza produzida pela economia capitalista). Em segundo lugar, Bento XVI adverte que a busca desenfreada do lucro individual gera miséria em grande escala e destrói o meio ambiente, assim comprometendo o bem-estar das futuras gerações. Em terceiro lugar, fora do mercado, é preciso buscar nas instituições da família, da comunidade local e da religião organizada o ‘cimento’ capaz de promover a coesão social e fortalecer um clima de confiança, sem o qual não existe sequer desenvolvimento econômico a longo prazo. Em quarto e último lugar, mas não menos importante, o papa acentua que, no atual contexto da globalização, a moldura institucional dos Estados nacionais ficou estreita demais para garantir a eficaz regulação das finanças mundiais.

Por isso, a encíclica clama por uma profunda reforma das Nações Unidas como caminho para irmanar povos e nações e assim construir uma nova ordem jurídica e política encarregada do gerenciamento da economia global em benefício do conjunto da Humanidade.

Proponho ‘afunilar’ essa perspectiva ética universal trazendo-a para o âmbito do Brasil, da Região Nordeste e, por que não?, do nosso estado do Maranhão. A experiência histórica ensina que, nas áreas mais pobres e marginalizadas do nosso país, as crises econômicas, se demoram para chegar, também custam mais a ir embora, deixando no seu rastro o desemprego, a miséria e a desesperança para afligir ainda mais o cotidiano de uma população já muito sofrida.

Oxalá as palavras contidas na nova encíclica papal nos inspirem e deem novo alento para seguir lutando por melhores oportunidades de educação, saúde, cultura, qualificação profissional, emprego, moradia, transporte coletivo e segurança pública. Sua mensagem de solidariedade, confiança mútua, liberação das potencialidades criadoras dos seres humanos, reciprocidade e amizade deve guiar os passos de todos nós, fundamentar a avaliação popular do desempenho de seus representantes eleitos e servir como critério para a seleção dos que realmente mereçam o voto da sociedade em 2010.

Amém!

Clique aqui e leia a íntegra da Encíclica do Papa Bento XVI

Deputado federal pelo PTB/MA e presidente do seu partido no Maranhão

Nova sessão

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Quero estrear uma sessão nova aqui no blog. Além de publicar matérias a respeito da minha vida legislativa, quero ainda compartilhar minhas opiniões, artigos meus ou artigos que eu li e que gostei. Tentarei na medida do possível fazer isso toda semana. No topo do blog terá uma página permanente que terá a listagem de todos os links já publicados.

Para estrear esse espaço, começo com um artigo da escritora brasileira Lya Luft e que foi publicado na Revista Veja dessa semana. O título do artigo é: “A mentirosa liberdade”. É um artigo gostoso de ler e nos faz ficar felizes pelas vezes que não nos encaixamos em determinados esteriótipos sociais e descobrimos que essa é a verdadeira liberdade: sermos nós e não o que esperam de nós. Clique no link abaixo e leia:

Lya Luft: A mentirosa liberdade

Lya Luft: A mentirosa liberdade

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VEJA

“Liberdade não vem de correr atrás de ‘deveres’ impostos de fora, mas de construir a nossa existência”

Comecei a escrever um novo livro, sobre os mitos e mentiras que nossa cultura expõe em prateleiras enfeitadas, para que a gente enfie esse material na cabeça e, pior, na alma – como se fosse algodão-doce colorido. Com ele chegam os medos que tudo isso nos inspira: medo de não estar bem enquadrados, medo de não ser valorizados pela turma, medo de não ser suficientemente ricos, magros, musculosos, de não participar da melhor balada, do clube mais chique, de não ter feito a viagem certa nem possuir a tecnologia de ponta no celular. Medo de não ser livres.

Na verdade, estamos presos numa rede de falsas liberdades. Nunca se falou tanto em liberdade, e poucas vezes fomos tão pressionados por exigências absurdas, que constituem o que chamo a síndrome do “ter de”. Fala-se em liberdade de escolha, mas somos conduzidos pela propaganda como gado para o matadouro, e as opções são tantas que não conseguimos escolher com calma. Medicados como somos (a pressão, a gordura, a fadiga, a insônia, o sono, a depressão e a euforia, a solidão e o medo tratados a remédio), cedo recorremos a expedientes, porque nossa libido, quimicamente cerceada, falha, e a alegria, de tanta tensão, nos escapa.

Preenchem-se fendas e falhas, manchas se removem, suspendem-se prazeres como sendo risco e extravagância, e nos ligamos no espelho: alguém por aí é mais eficiente, moderno, valorizado e belo que eu? Alguém mora num condomínio melhor que o meu? Em fileira ao longo das paredes temos de parecer todos iguais nessa dança de enganos. Sobretudo, sempre jovens. Nunca se pôde viver tanto tempo e com tão boa qualidade, mas no atual endeusamento da juventude, como se só jovens merecessem amor, vitórias e sucesso, carregamos mais um ônus pesadíssimo e cruel: temos de enganar o tempo, temos de aparentar 15 anos se temos 30, 40 anos se temos 60, e 50 se temos 80 anos de idade. A deusa juventude traz vantagens, mas eu não a quereria para sempre: talvez nela sejamos mais bonitos, quem sabe mais cheios de planos e possibilidades, mas sabemos discernir as coisas que divisamos, podemos optar com a mínima segurança, conseguimos olhar, analisar e curtir – ou nos falta o que vem depois: maturidade?

Parece que do começo ao fim passamos a vida sendo cobrados: O que você vai ser? O que vai estudar? Como? Fracassou em mais um vestibular? Já transou? Nunca transou? Treze anos e ainda não ficou? E ainda não bebeu? Nem experimentou uma maconhazinha sequer? E um Viagra para melhorar ainda mais? Ainda aguenta os chatos dos pais? Saiba que eles o controlam sob o pretexto de que o amam. Sai dessa! Já precisa trabalhar? Que chatice! E depois: Quarenta anos ganhando tão pouco e trabalhando tanto? E não tem aquele carro? Nunca esteve naquele resort?

Talvez a gente possa escapar dessas cobranças sendo mais natural, cumprindo deveres reais, curtindo a vida sem se atordoar. Nadar contra toda essa louca correnteza. Ter opiniões próprias, amadurecer, ajuda. Combater a ânsia por coisas que nem queremos, ignorar ofertas no fundo desinteressantes, como roupas ridículas e viagens sem graça, isso ajuda. Descobrir o que queremos e podemos é um bom aprendizado, mas leva algum tempo: não é preciso escalar o Himalaia social nem ser uma linda mulher nem um homem poderoso. É possível estar contente e ter projetos bem depois dos 40 anos, sem um iate, físico perfeito e grande fortuna. Sem cumprir tantas obrigações fúteis e inúteis, como nos ordenam os mitos e mentiras de uma sociedade insegura, desorientada, em crise. Liberdade não vem de correr atrás de “deveres” impostos de fora, mas de construir a nossa existência, para a qual, com todo esse esforço e desgaste, sobra tão pouco tempo. Não temos de correr angustiados atrás de modelos que nada têm a ver conosco, máscaras, ilusões e melancolia para aguentar a vida, sem liberdade para descobrir o que a gente gostaria mesmo de ter feito.

Lya Luft é escritora

João Coutinho: Homens e lobos

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

(Folha de São Paulo)

Para entender a natureza da felicidade, compre um gato. A felicidade, para ele, não existe por adição

 
EXISTEM MOMENTOS em que fico horas a olhar para o meu gato. Com inveja, sempre com inveja. Só Deus sabe o que existe na cabeça de um felino. Mas acompanho as rotinas dele e sei, filosoficamente falando, que ele é feliz.

Nós, humanos, seres temporais por excelência, vivemos aprisionados à ideia do nosso próprio fim. E, como se não bastasse essa terrível condenação, somos também incapazes de habitar cada momento inteiramente. O presente, em nós, está sempre carregado de passado e de futuro: do que fomos, das memórias que temos, do caminho e das escolhas que fizemos; e daquilo que gostaríamos de ser, ou ter, ou fazer. O presente, para nós, não é um lugar para estar. É uma breve passagem a caminho de outra breve passagem.

Sempre e sempre e sempre até a despedida final. Por isso, aconselho: se quiserem entender a natureza da felicidade, comprem um gato. E acompanhem a forma como ele cumpre as suas rotinas com entrega contida e total. Ele não espera nada, ele não deseja nada. A felicidade, para ele, não existe por adição: de objetos, experiências, lugares. Mas por repetição: ele repete as experiências que são significativas. E, em cada repetição, existe a certeza da mesma felicidade.

Um gato ajuda a entender tudo isso. Mas um livro publicado recentemente reforça a ideia. Confesso: comprei o livro sem expectativas numa livraria do aeroporto de Heathrow, em Londres. Só o título despertou a curiosidade: “The Philosopher and the Wolf: Lessons from the Wild on Love, Death and Happiness” (o filósofo e o lobo: lições do selvagem sobre amor, morte e felicidade; Granta, 246 págs.). Não é manual de filosofia “ligeira”. Longe disso. O livro de Mark Rowlands é uma mistura erudita de experiência pessoal e reflexão metafísica, em que Nietzsche, Heidegger e Camus têm participação direta.

Ponto de partida: certo dia, o professor Rowlands leu anúncio no jornal. Alguém vendia lobos por US$ 500. Rowlands entrou na aventura. Horas depois, a casa estava destruída pelo novo hóspede, de nome Brenin, que não poupou a mobília e as cortinas. Primeira lição: um lobo não é um cão. E, nos 11 anos seguintes e após treino apertado, Brenin foi a companhia do professor. Em casa. Na rua. Em viagem. E até nas aulas, para espanto de colegas e alunos: enquanto o professor dissertava sobre Platão e Aristóteles, o lobo dormitava ao seu lado.

As aulas terminavam com um uivo. O livro de Rowlands é uma descrição pessoal de tudo isso: da relação idiossincrática de um homem com um lobo. Mas o livro de Rowlands oferece-se essencialmente como uma longa meditação sobre a natureza da felicidade humana. Ou, se preferirem, sobre a sua impossibilidade.

Impossibilidade? Precisamente. A modernidade ofereceu-se aos Homens como projeto de construção secular. Por meio da Razão, seria possível conquistar a “sorte” que tanto afligia os gregos e realizar na Terra o que a cristandade medieval apenas prometia para o Reino dos Céus. A felicidade seria uma construção individual e progressiva rumo a um fim determinado.

Paradoxalmente, essa ideia libertadora apenas trouxe o seu reverso: se a felicidade era responsabilidade nossa, a infelicidade também. E, adicionalmente, se a felicidade era convertida em projeto, ela seria igualmente convertida em insatisfação interminável: jamais estaremos onde queremos estar; jamais seremos o que queremos ser; jamais teremos o que queremos ter.

A felicidade moderna converteu-se numa vigília permanente: a vigília de Homens insatisfeitos; de Homens esmagados pelos seus próprios ideais de felicidade e perfeição. Viver com Brenin ensinou a Rowlands essa crucial diferença entre Homens e animais: nós vivemos mergulhados no tempo e nas nossas próprias teleologias pessoais. E a forma como desejamos sempre momentos que são posteriores ao momento presente impede-nos de viver qualquer momento de forma real e total. A infelicidade humana não nasce da nossa ignorância ou da nossa imperfeição. Muito menos da ignorância ou da imperfeição das nossas sociedades.

A infelicidade humana é um produto da nossa específica temporalidade. Resta uma questão final: serão os Homens superiores aos animais? A resposta de Rowlands talvez seja a mais honesta: depende do que entendemos por “superioridade”. Sim, um lobo jamais pintaria o teto da Capela Sistina. Mas será a Capela Sistina uma necessidade para um lobo? Ou, pelo contrário, será antes uma necessidade para nós? Uma forma de completarmos a parte que nos falta das várias partes que nos faltam?

O sempre desequilibrado humano

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ROBERTO DaMATTA

O Globo – 10/02/2010
Tudo o que é humano é complicado; ou melhor: não pode ser simples senão não é humano. O humano é impreciso, enigmático, ambíguo, pérfido, e acima de tudo, espesso como os nevoeiros e as peças de Shakespeare. É, como as máscaras de carnaval e as cebolas: múltiplo; e tem muitas caras, varandas, porões e infindáveis corredores. Tem também o abraço solar, a mão aberta e calorosa, o sorriso que cativa e o beijo apaixonado que promove a vida. Tudo nasce de uma mesma fonte da qual jorram igualmente ódio, inveja, coragem e ressentimento.

O transitório que, para Freud e Thomas Mann é tudo, promove a busca de consistência e do eterno. A saudade articula o instantâneo que é vida e a eternidade feita do nada. Os deuses nos invejam não só porque não existiriam sem nossas preces e oferendas, pois eles precisam de nós tanto quanto nós necessitamos deles, mas porque vivemos na transitoriedade e na dúvida do aqui agora, do ser ou não ser e do você e eu que engendram tenacidade, desejo, amor, lealdade e honra. Aquele “fazer ou morrer” da canção “As time goes by”. Não estamos aqui para brincadeiras e, diferentemente dos deuses, não temos tempo a perder. Exceto no carnaval…

No labirinto da vida, como na velha Creta de Teseu, ou se encontra uma saída ou se dá de cara com o Minotauro.

O caso Lula é exemplar. Ele tem mais popularidade do que qualquer outro presidente. Ademais, como Prometeu (sem trocadilho), ele roubou a mais decisiva contribuição à modernidade democrática brasileira — o Plano Real. Virou pai da revolução realizada pelo satanizado FHC que, como manda o paradoxal esquecimento humano, era estigmatizado pelo PT como “herança maldita”. Hoje, vendo o Lula como cidadão do mundo, fazendo abertamente uma campanha política que os juízes não enxergam, transferindo votos para sua Chefa da Casa Civil e rompendo com o dogma da transferência de votos que os marqueteiros — esses derradeiros matemáticos do humano — diziam ser impossível, julguei que o “cara” estava num mar de rosas. Mas eis que ele sofre um piripaque. Eu medito: só os seres humanos sofrem tais reviravoltas. Só eles podem ficar mal quando tudo aparentemente vai bem. Seria uma premonição, porque quem tudo promete não consegue decidir? Ou seria algo sem importância? Mas há mesmo algo sem importância quando se trata do humano? Os tigres de dentes de sabre, quanto mais matavam, mais lhes cresciam e afiavam os dentes. Entre nós, porém, quanto mais sucesso, mais o fracasso ronda nossa casa; quanto mais subimos, mas depressa descemos; quanto mais gozo, mais angústia e sofrimento. O amor faz sangrar como os animais sacrificados. E a morte, sendo o nosso destino, só se desliga da vida pela paixão que ilude e vira o mundo pelo avesso.

Foi só a partir da institucionalização do individualismo que começamos a dizer abertamente que “Estamos muito bem, obrigado!” Antigamente, os brasileiros eram proibidos de assumir toda e qualquer felicidade.

Não pegava bem ser feliz num mundo inseguro, desigual e injusto.

Todos iam de mal a pior, como aqueles personagens de Machado de Assis. Aprendi a insistir no “vou indo” e, quando muito, soltar um “mais ou menos” que, nos Estados Unidos, assustava meus amigos crentes no “the sunny side of the street” (no lado ensolarado da rua).

Se, para nós, sofrer é mais ou menos normal, para eles o direito à felicidade é um projeto possível, autoevidente e constitucional. Em minhas preces eu rogo pelo amor e pela felicidade; meus amigos americanos, porém, nascem com a certeza de tudo isso e o céu também.

Vejam vocês: o sujeito se livra de um apuro apenas para descobrir que passou de um problema para outro.

“Controlei finalmente o meu peso — disse-me a ex-gordinha Selma — só que não como mais!” O antropólogo e escritor maranhense, Nunes Pereira, de saudosíssima memória, era meu amigo e me visitava de quando em vez quando eu trabalhava num museu. Fazia minha alegria, porque não é fácil trabalhar no meio de pesquisadores, coleção de ossos, bichos empalhados e múmias.

Um dia, ele me contou o caso de um médico amazonense desgostoso com a depravação reinante na civilização da borracha que fazia de Manaus um centro de esbórnia.

Constatado o hedonismo da capital amazonense resolveu, como um personagem de Joseph Conrad, renunciar à fortuna e aos vícios confortáveis, para viver em simplicidade e pureza. Afastou-se de Manaus até chegar num derradeiro povoado, limite entre o civilizado impuro e o selvagem virginal. Ali, pegou uma canoa e remou em direção a uma casa de palafita situada no mais fundo da mata.

Ao aproximar-se, vislumbrou formas estranhas num barranco. De perto, discerniu enojado: era um caboclo que copulava com um mamífero cetáceo de água doce — uma bota! — no barranco. A bestialidade no meio da selva mais pura, como queriam ele e José de Alencar, era muito mais ofensiva do que as perversidades pagas dos lupanares de Manaus. Depois de tanto fugir, voltara ao ponto de partida. A fabula era sempre arrematada com um sorriso e o seguinte: Ele aprendeu que onde há o humano há o depravado e o perverso. Ou o desvio seria apenas um episódio na vida de um bicho não declinável mas que se pensa como tal?

Como (não) formar leitor

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Por que o brasileiro só lê um livro por ano, enquanto o americano e o europeu leem sete, oito vezes mais? Por que existem no país mais de 70 milhões de pessoas que não leem? Há várias respostas para explicar o fenômeno: baixo nível cultural de um povo com 21 milhões de analfabetos, poder aquisitivo insuficiente, falta de hábito, concorrência da televisão e da internet. Esta semana tomei conhecimento de outro fator, que é mais grave do que os outros, pois deveria ser instrumento de atração de leitores e é, ao contrário, de afastamento. Refiro-me ao aprendizado da leitura nas escolas de nível médio.

Um amigo, pai de um aluno do segundo ano, adolescente, mandou-me uma lista dos livros que o filho deverá ler neste semestre. Quem sabe eu não teria um ou outro para emprestar? Não vou citar a relação completa para não entediá-los. Eis alguns: “Senhora” e “Iracema”, de José de Alencar; “O cortiço”, de Aluisio de Azevedo; “Memórias de um sargento de milícias”, de Manoel Antonio de Almeida; “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto; “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis; “Memórias sentimentais de João Miramar”, de Oswald de Andrade (esqueci de perguntar se o curso era de memorialística).

Não vou entrar no mérito de uma seleção que mistura um clássico como “Brás Cubas” com obras de discutível qualidade estética ou literariamente datadas, como “Senhora” e “Iracema”. O que eu me pergunto é se a melhor maneira de iniciar um jovem na leitura é forçando-o, por exemplo, a digerir a história de amor da índiazinha virgem dos cabelos negros, se hoje até o ministro Edison Lobão tem os seus “mais negros do que a asa da graúna”.

Experimente tirar seu filho da frente do computador oferecendo-lhe um texto assim: “Iracema saiu do banho; o aljôfar d’água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do guará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste. A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome.” Antes que me acusem de desprezar estilos e valores de época, esclareço que implico é com essa maneira inadequada de se levar um aluno de 15, 16 anos ao prazer da leitura. Comigo, no ginásio, me fizeram odiar os Lusíadas ao me obrigarem a “análises lógicas” em que eu deveria procurar o sujeito oculto de uma frase, como se fosse um detetive. Só mais tarde, na faculdade, e graças à professora Cleonice Berardinelli, descobri a beleza que havia no magistral épico de Camões. Para o gosto de um jovem de hoje, diante de tantos apelos audiovisuais, não seria mais palatável, como começo de conversa, um Rubem Braga ou um Fernando Sabino?

Zuenir Ventura é jornalista e escritor , colunista do jornal O Globo e da revista Época.